Do espaço niilista ao espaço hedonista

Descartes2

(…) um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras (…)

(René Descartes)

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pascal

Imerso na imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me apavoro”

(Blaise Pascal)

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heidegger1“O ponto de comparação mais difícil, mas também menos enganador, para avaliar a autenticidade e o vigor de um filósofo é ver se ele capta, logo e radicalmente, no ser do ente, a proximidade do nada. Quem não tiver essa experiência ficará, de modo definitivo e sem esperança, fora da filosofia”

(Martin Heidegger)

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Sem Título-1 Como ainda estamos com o mecanicismo científico, matemático, lógico e geométrico enfiado até o talo em nossos rabos, tendemos a avaliar a filosofia cartesiana apenas em seu aspecto tecnico-material. De fato, sabemos discorrer com propriedade acerca da espectral res extensa, dos poderes meta-prudentes da racionalidade pensamenteira de Descartes e dos demais subterfúgios lógicos e rasteiros dos quais o filósofo lança mão para fundamentar (?) seu racionalismo. Mas muito pouco (ou nada) falamos acerca das implicações existenciais da concepção cartesiana de espaço, que desde o século XVII se tornou hegemônica na filosofia e na vida, atravessou incólume pela crítica kantiana e veio perder força apenas no século XX, no pós-Nietzsche e em suas crias na filosofia, nas artes e, por que não, na arquitetura. Mas é importante salientar: essa perda de força só se dá sob o signo da produção filosófica, só se tornou tangível naqueles que souberam ler e viver o que se produziu no pós-Nietzsche.

Como é sabido, vivemos num período em que a realidade socio-cultural  reluta (por inúmeras razões, diga-se, e todas elas de alguma maneira relacionada com os poderes sob os quais tentamos viver) em dar ouvidos ao que a filosofia vem produzindo em nosso tempo. Como caranguejos, vivemos, hoje, sob concepções filosóficas que há muito deveriam ter sido enterradas no poeirento ambiente universitário. E é sobre esse descompasso entre filosofia e vida que vemos misérias anacrônicas (misérias que deveriam estar no túmulo com Pascal…) ganhando fôlego em nossos dias.

VazioÉ com a noção de espaço que identifico alguns de nossos males contemporâneas (síndrome do pânico, depressão, agorafobia, e a pqp). Desde Descartes, o espaço é o lugar, por excelência, esvaziado de vida. A res extensa não se comunica conosco, não nos toca, é indiferente, ascética, fantasmagórica, por ela deslizamos em inércia como que num vácuo de angústia. Como bolas de bilhar numa mesa de dimensões infinitas, deixamos de nos sentir em casa, perdemos o conforto, nosso corpo estranha e se retorce sobre si mesmo: ora se contrai para se sentir, ora se dilata em busca de um contato que, quando surge, se dá com o ponto móvel de outra bola de bilhar que deslizará para o seu lado no vazio infinito… Diante da incomunicabilidade das longínquas estrelas, sentimos o desespero de ter que viver nesse vácuo de dimensões cósmicas.

Mas as coisas não precisam necessariamente se passar sob o signo dessa cemitérica concepção espacial. Não mesmo.

Kant nos ensinou que todo corpo pressupõe uma extensão, que todo objeto é circundado pelo espaço que ocupa e que, sem esse lugar, o objeto não pode ter existência (ok, professora, fenomênica). Aceitemos. Mas façamos com Kant o que faremos com o espaço: digamos que esse objeto é… nosso corpo… e digamos que o espaço é algo que tem cor, cheiro, textura tátil e visual, temperatura, luminosidade, etc. Agora, joguemos fora a fita métrica, matemos os agrimensores. Aos diabos o espaço quantitativo! Foda-se o “quanto mede”, foda-se a “metragem quadrada”, a angulação e a cardinalidade!

 

Agora olhemos. Mas tenhamos cuidado com esse olhar… ele está ainda impregnado da adestração à qual nos submeteram; não “atravesse” as coisas, chame-as para si, deixe que elas te olhem. Isso. Olhe-as com todos os seus poros. Olhe cheirando, tateando. Isso, fareje o espaço! Agora ouça. Ouça como o espaço canta. Está ouvindo? Pois é.

Você está certo: o canto pode eventualmente ser feio, pode ferir seus ouvidos. O espaço pode feder, ofuscar, arranhar, fazer suar. Sei que a melodia do espaço em que estás pode muito bem ser estridente, histriônica, louca. Mas isso pouco importa, aliás, isso é um bem: se o espaço estivesse morto, como morto é o espaço geometrico-matematico, angulado, logicizado, calculável, recortável, cartesiano… duvido que ele estivesse te olhando, te recebendo, interagindo contigo. Duvido que ele estivesse cantando.

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