Jean Meslier: um vigário despirocado

“Quando o assunto é Iluminismo francês, em especial o pensamento político do período, os nossos manuais e cursos acadêmicos de filosofia dão destaque apenas a pensadores da estirpe de Montesquieu e Rousseau, menosprezando outros com base em argumentos pouco persuasivos. É o caso, por exemplo, de Jean Meslier (1664-1729), um vigário de aldeia que escreveu, por volta de 1720, uma obra radical, na qual preconiza a união dos oprimidos em torno do estrangulamento do último rei com as tripas do último padre. Enquanto os vultos do Iluminismo, a maior parte de procedência nobre ou burguesa, advogavam o deísmo, a propriedade privada e o despotismo esclarecido como elementos de uma verdadeira civilização, Meslier, muito antes deles, sustentava o deicídio, o tiranicídio e o comunismo como as bases de um novo mundo, singularidade que lhe garante, a nosso ver, um lugar de importância e destaque na filosofia política das Luzes.”

Por Paulo Jonas de Lima Piva

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Da filosofia universitária e da nossa cagalhonice

Por Rodrigo Lucheta

Estudante sem EU 

O pensamento virou mercadoria.

O adorno universitário virou a purpurina burguesa capaz de encarecer o pensamento, de forma a melhor (mais caro) vendê-lo para nós, incautos idiotas ávidos pela sagrada unção do título.

Da mesma forma que doutos professores de filosofia, fantasiados de viajantes historiográficos, fingem percorrer o passado oficial da filosofia para melhor resistirem a este mesmo passado oficial (quando na verdade estão se colocando no sentido da História para banharem-se da aura justificada historicamente por esta mesma História), nós, alunos, acabrunhados diante do titânico poder que é dado aos sacerdotes do saber, fingimo-nos felizes diante da precária, alienante e mal contada historinha que nos apresentam nas aulas. É simples: basta olharmos o valor que atribuímos às notas (para livrarmo-nos o quanto antes daquilo tudo com nosso venerado título), em comparação com o valor que damos ao conteúdo…

A concentração do poder e a articulação havida entre os detentores de poder (do Vaticano aos Centros de Ciências da Educação...) fazem emanar pela Universidade uma lógica, uma dialética niveladora, cerceadora dos ímpetos individuais. O orgulho vira prepotência, a humildade... uma virtude. Tudo é pensado sob o prisma da mediocridade amorfa que reproduzirá, com seu diploma enfiado no rabo, o sistema que matou nela o indivíduo e pôs no mundo o sujeito (na acepção de sujeitado) castrador.

Na dinâmica reprodutora do atual sistema e estado de coisas, Foucault e os livros de auto-ajuda se complementam. Contra a atividade enérgica dos “utópicos” (arrogantes, prepotentes, impacientes, radicais…), a estratégia que amesquinha a força e inviabiliza o impacto. Contra as subjetividades cintilantes, de aço, irredutíveis... o ideário pequeno-burguês que faz da filosofia um manual para viver como as plantas: os tontos alienados compram livros de auto-ajuda para repetirem mantras diante do espelho; nós, os sábios universitários, compramos livros do Foucault e nos desculpamos na inação fantasiando estratégias que servem apenas para protelar a atividade que criará algo novo… E no presente, a bostidão corre solta.

O método científico é uma arma contra as subjetividades auto-afirmadoras. Com ele, nossos cabedais vernaculares são atirados na privada. O sentido que as coisas representam para nós não podem ser considerados. Vivemos sob a ditadura dos fatos. E só é fato aquilo que algum gordo imbecil determinou em seu gabinete com ar condicionado... Diante dos fatos, às favas a imaginação teórica...

É tudo uma grande novela, meus amigos. Mesmo o pensamento contrário, crítico, negador está preso no macro processo de produção e reprodução do real. Estamos fadados, por essa dinâmica, a morrer no fingimento, como baratas nos debatendo no estômago de Behemoth. Porém, para articular uma resistência digna deste nome, para lutarmos contra as tiranias e os totalitarismos invisíveis (mas não menos mortificadores) que diuturnamente tentam esfolar nossa singularidade… precisamos ser ouvidos. E para sermos ouvidos, precisamos do grito… e, pragmaticamente, também do título, do diploma. Para não sermos encapsulados na categoria do “filósofo de boteco”, incapaz de atravessar o purgatório universitário… obtenhamos o título… com notas máximas, de preferência…

Se a filosofia popstar contemporânea demoliu os fundamentos ontológicos erigidos desde a antiguidade, os filósofos de hoje refugiaram-se na Universidade para nela forjar um fundamento confortável para si... e dele, apedrejam os que sobrevivem do lado de fora.

Portanto, meus caros, não vislumbro saída: se o pensamento é mercadoria e a forma de lidar com o pensamento é seu encarecimento... Fodam-se as convenções, as linguagens padronizadas e padronizantes. Fodam-se os conceitos enlatados por Doutores. Fodam-se os métodos interpretativos e as dinâmicas catadoras de fatos para a legitimação da dominação. É do interior desse organismo que as células precisam começar a expelir suas secreções…

Que uma nova abordagem da filosofia seja inoculada nos palácios universitários (pois eles também precisam tremer…); mas saibamos também pensar para além dos muros dentro dos quais se escondem esses espremedores de culhões que gritam: formação, formação, formação!!!. Quando precisamos de: transformação, transformação, transformação!!!

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Michel Onfray entrevistado.

Uma de suas obras mais importantes e polêmicas é o Tratado de Ateologia, na qual o senhor defende a substituição da religião pela filosofia. Mas, para tirar a religião da vida, é preciso necessariamente substituí-la por algo?

 
Na verdade, é preciso substituir o placebo, a religião, pelo medicamento, a filosofia. Em outras palavras, trocar as fábulas, as histórias infantis, os mitos, o pensamento mágico, os além-mundos, pela sabedoria, pelas Luzes, pela inteligência, pela razão. Se antes ensinava-se como verdade uma Virgem que tem filhos, um Deus que abre o mar para deixar seu povo passar, mortos que ressuscitam, peixes multiplicados ao infinito, água que se transforma em vinho em um passe de mágica, hoje é preciso ensinar a reflexão, a análise, o princípio da não-contradição, a obrigação de ser coerente, o pensamento racional, sensato e reflexivo. Em resumo: substituir Bento XVI por Voltaire.


Mas qualquer um pode esquecer Deus? Mesmo aqueles que talvez não tenham conhecimento o suficiente para ver o mundo de outra maneira?


Se deixarmos uma criança longe de influências, jamais ela inventará essas bobagens, que são um puro produto da educação. É preciso somente substituir um mundo por outro, uma pedagogia por outra, um saber e seus conteúdos por outros saberes e outros conteúdos.


O senhor acredita que todo pensamento filosófico nasce de um eu, da experiência de um sujeito, e que muitos filósofos erraram ao construírem discursos supostamente desconectados de sua vida pessoal. No seu caso, o abandono que o senhor viveu na infância pode estar na origem de sua recusa pelo modelo familiar judaico-cristão?


Difícil de encontrar uma única causa. Há um conjunto de influências que faz com que sejamos o que somos. Também é preciso levar em conta uma mãe nada maternal, um pai invisível, surras durante a infância, um abandono ao orfanato com dez anos de idade e isso durante quatro anos, mais três anos de internato depois, uma autonomia aos dezessete… Mas eu bem que poderia ter desejado construir uma família, pensando que faria melhor que os meus pais, o que não teria sido muito difícil. Não, eu acredito que o verdadeiro motivo da minha recusa por esse modelo é libertário. Um filho condena os pais a perderem a própria liberdade, pois eles devem tudo à criança: presença, atenção, cuidados, disponibilidade, garantia de um lar estável, etc. Ora, eu gosto demais das crianças para correr o risco de me engajar em uma educação que é, de qualquer maneira, uma empreitada acima das forças humanas!

O número crescente de divórcios, separações dolorosas, violência conjugal e casamentos sucessivos mostra que a possibilidade de realização dentro de uma relação monogâmica e que supostamente deve durar toda a vida é cada vez menor? Ou isso tudo indica justamente que continuamos desejando o mesmo tipo de vida que nossos antepassados?


O problema é que não se imagina ou muito raramente o casal fora do casamento, da fidelidade, da monogamia, da coabitação, da procriação. O modelo dominante segue uma lógica consumista: ter, possuir, colecionar, gastar, descartar após o uso. Ele não leva à construção de uma história, mas à justaposição de histórias, que têm uma certa data de validade, e certos fatos funcionam como limites imediatos e definitivos: o adultério, por exemplo. É preciso inventar novas possibilidades de existência, inclusive e sobretudo no que diz respeito ao casal, à vida a dois. Construir para si no campo amoroso, e em todos os outros, uma vida sob medida.


Em sua obra, o senhor propõe uma definição de desejo: desejo é excesso, e não falta, incompletude, busca pela outra “metade”. Se desejo é excesso, isso significa que às vezes é preciso sublimar alguns de nossos impulsos? E, uma vez que seu pensamento está livre de qualquer moral religiosa, qual o critério que o senhor propõe para avaliarmos se devemos ou não responder a determinado desejo?


O desejo definido como excesso não obriga a nada no terreno da prática. Por outro lado, se a ética defendida é hedonista, que é meu caso, não há razão para impedir que o desejo se transforme em prazer. A ética que proponho é contratual: devem-se realizar aqueles desejos que não causam mal ao outro. E fugir das pessoas que, delinquentes dos relacionamentos, são incapazes de estabelecer uma relação contratual com seu semelhante porque são psicóticos, neuróticos, perversos ou acometidos por problemas de comportamento, o que toca milhões de pessoas… Minha ética hedonista é democrática porque é destinada a todos, mas aristocrática porque somente um punhado pode aderir a ela e realizá-la.


É comum que se associe o prazer à juventude, como se o prazer tivesse uma data de validade: em certa altura da vida, seria preciso renunciar a ele, em nome de uma existência mais regrada, estável, sem percalços, e que geralmente está relacionada a um emprego fixo, casamento, filhos, etc. Como sua filosofia hedonista vê isso?


Desejar o prazer é o que define o ser humano, do ventre materno ao último suspiro. Não há idade para ser hedonista, ou para não deixar de sê-lo. Os prazeres são diversos e múltiplos. Existem prazeres relacionados à idade, é claro: a enologia não diz respeito às crianças de cinco anos, nem a gastronomia, e a velhice tem suas próprias alegrias. Mas, de qualquer maneira, é preciso responder ao prazer não pela recusa, mas por sua realização, qualquer que seja a idade.


Lendo sua obra, percebo que o senhor gosta da psicanálise, mas não da de Lacan. Por quê?


Gosto de Freud e do freudismo, de pouco da psicanálise institucional, e de praticamente nenhum psicanalista. Lacan, o maior dos histriônicos, é uma catástrofe que muito fez para a má reputação da disciplina. Vou falar sobre isso no meu próximo seminário na Universidade Popular de Caen. Em resumo: a psicanálise é um pensamento mágico que quis apresentar-se como ciência, o que forçou Freud a dizer um certo número de mentiras reconhecidas como verdade. Eu considero o pensamento mágico um pensamento nobre e respeitável, mas é preciso que ele não tenha a audácia de pretender rivalizar, por exemplo, com a teoria da relatividade. Ou com o heliocentrismo. Além do mais, conheci vários psicanalistas que me pareciam menos em condições de tratar alguém que de curar seus próprios delírios. Lacan em primeiro lugar. Para evitar dar ordens a si mesmos, eles davam a outros, com resultados deploráveis, ou nulos. É preciso voltar ao texto freudiano. Lê-lo de maneira crítica.


O senhor criou a Universidade Popular de Caen em 2002, após demitir-se do sistema de ensino francês. O que o incomoda no ensino tradicional, e que o senhor decidiu fazer diferente em sua universidade?


O que me incomodava? A instituição, a polícia acadêmica, administrativa, a burocracia, o adestramento no lugar da educação, a disciplina no lugar da instrução, a formatação intelectual e ideológica de clones destinados a servir ao mercado, o conteúdo pobre, o corpo docente triste, apagado, desmobilizado, o desprezo dos alunos, a “militarização” dos estabelecimentos, a sede de poder dos pequenos chefes, etc. A Universidade Popular de Caen é gratuita, sem obrigação de títulos, sem diplomas, sem visar o lucro, ela é livre, organizada em torno do saber existencial, pessoal…


O senhor defende a ideia de que a filosofia não é apenas uma disciplina acadêmica, mas algo que deve ser posto em prática, que deve estar presente em nosso cotidiano. Nesse sentido, a filosofia deve estar mais na mídia que na sala de aula?


Nem mais, nem menos. Há espaço para todos, e não é do meu feitio fazer fogueiras, pôr fogo em bibliotecas, ou em filósofos. Deixemos um punhado de provocadores licenciados em filosofia, professores, doutores fazer jornalismo filosófico e recuperar os benefícios simbólicos e financeiros, surfando na onda filosófica. Deixemos tal ou tal celebridade, escolhida por sua aparência, ou por sua vida social, “fazer filosofia” na televisão, invocando Hegel para falar das amantes do presidente da república. É o bolor de nossa época. Deixemos filósofos aconselharem os poderosos que nos governam, e discursarem na mídia sobre o porquê de a miséria ser mais digna em Ruanda ou na Bósnia do que na porta de casa ou na das usinas. É o resíduo da humanidade. Deixemos. Mas proponhamos também coisas que vão além disso. As pessoas que as merecem, no fim das contas, sabem ver as diferenças.

Fonte: Revista Vida Simples

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Nietzsche – A morte de Deus – O meio ambiente – Uma imagem

 

“Deus está morto: mas, considerando o estado em que se encontra a espécie humana, talvez ainda por um milénio existirão grutas em que se mostrará a sua sombra.”

Friedrich Nietzsche

 

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O homem contemporâneo (por Michel Onfray)

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“O capitalismo formulou seu tipo ideal com a figura, anunciada por Marcuse, do homem unidimensional, variação sobre o tema proposto por Nietzsche do homem calculável. Seu retrato é conhecido: iletrado, inculto, ávido, limitado, sacrificando-se às palavras de ordem da tribo, arrogante, inseguro, dócil, fraco com os fortes, forte com os fracos, simples, previsível, amante arrebatado dos jogos e dos estádios, devoto do dinheiro e sectário do irracional, profeta especializado em banalidades, em idéias curtas, tolo, néscio, narcisista, egocêntrico, gregário, consumista, consumidor de mitologias do momento, amoral, desmemoriado, racista, cínico, sexista, misógino, conservador, reacionário, oportunista, portador ainda de traços de um fascismo ordinário. Eis o sujeito cujos méritos, valores e talentos são hoje vangloriados”.