Michel Onfray entrevistado.

Uma de suas obras mais importantes e polêmicas é o Tratado de Ateologia, na qual o senhor defende a substituição da religião pela filosofia. Mas, para tirar a religião da vida, é preciso necessariamente substituí-la por algo?

 
Na verdade, é preciso substituir o placebo, a religião, pelo medicamento, a filosofia. Em outras palavras, trocar as fábulas, as histórias infantis, os mitos, o pensamento mágico, os além-mundos, pela sabedoria, pelas Luzes, pela inteligência, pela razão. Se antes ensinava-se como verdade uma Virgem que tem filhos, um Deus que abre o mar para deixar seu povo passar, mortos que ressuscitam, peixes multiplicados ao infinito, água que se transforma em vinho em um passe de mágica, hoje é preciso ensinar a reflexão, a análise, o princípio da não-contradição, a obrigação de ser coerente, o pensamento racional, sensato e reflexivo. Em resumo: substituir Bento XVI por Voltaire.


Mas qualquer um pode esquecer Deus? Mesmo aqueles que talvez não tenham conhecimento o suficiente para ver o mundo de outra maneira?


Se deixarmos uma criança longe de influências, jamais ela inventará essas bobagens, que são um puro produto da educação. É preciso somente substituir um mundo por outro, uma pedagogia por outra, um saber e seus conteúdos por outros saberes e outros conteúdos.


O senhor acredita que todo pensamento filosófico nasce de um eu, da experiência de um sujeito, e que muitos filósofos erraram ao construírem discursos supostamente desconectados de sua vida pessoal. No seu caso, o abandono que o senhor viveu na infância pode estar na origem de sua recusa pelo modelo familiar judaico-cristão?


Difícil de encontrar uma única causa. Há um conjunto de influências que faz com que sejamos o que somos. Também é preciso levar em conta uma mãe nada maternal, um pai invisível, surras durante a infância, um abandono ao orfanato com dez anos de idade e isso durante quatro anos, mais três anos de internato depois, uma autonomia aos dezessete… Mas eu bem que poderia ter desejado construir uma família, pensando que faria melhor que os meus pais, o que não teria sido muito difícil. Não, eu acredito que o verdadeiro motivo da minha recusa por esse modelo é libertário. Um filho condena os pais a perderem a própria liberdade, pois eles devem tudo à criança: presença, atenção, cuidados, disponibilidade, garantia de um lar estável, etc. Ora, eu gosto demais das crianças para correr o risco de me engajar em uma educação que é, de qualquer maneira, uma empreitada acima das forças humanas!

O número crescente de divórcios, separações dolorosas, violência conjugal e casamentos sucessivos mostra que a possibilidade de realização dentro de uma relação monogâmica e que supostamente deve durar toda a vida é cada vez menor? Ou isso tudo indica justamente que continuamos desejando o mesmo tipo de vida que nossos antepassados?


O problema é que não se imagina ou muito raramente o casal fora do casamento, da fidelidade, da monogamia, da coabitação, da procriação. O modelo dominante segue uma lógica consumista: ter, possuir, colecionar, gastar, descartar após o uso. Ele não leva à construção de uma história, mas à justaposição de histórias, que têm uma certa data de validade, e certos fatos funcionam como limites imediatos e definitivos: o adultério, por exemplo. É preciso inventar novas possibilidades de existência, inclusive e sobretudo no que diz respeito ao casal, à vida a dois. Construir para si no campo amoroso, e em todos os outros, uma vida sob medida.


Em sua obra, o senhor propõe uma definição de desejo: desejo é excesso, e não falta, incompletude, busca pela outra “metade”. Se desejo é excesso, isso significa que às vezes é preciso sublimar alguns de nossos impulsos? E, uma vez que seu pensamento está livre de qualquer moral religiosa, qual o critério que o senhor propõe para avaliarmos se devemos ou não responder a determinado desejo?


O desejo definido como excesso não obriga a nada no terreno da prática. Por outro lado, se a ética defendida é hedonista, que é meu caso, não há razão para impedir que o desejo se transforme em prazer. A ética que proponho é contratual: devem-se realizar aqueles desejos que não causam mal ao outro. E fugir das pessoas que, delinquentes dos relacionamentos, são incapazes de estabelecer uma relação contratual com seu semelhante porque são psicóticos, neuróticos, perversos ou acometidos por problemas de comportamento, o que toca milhões de pessoas… Minha ética hedonista é democrática porque é destinada a todos, mas aristocrática porque somente um punhado pode aderir a ela e realizá-la.


É comum que se associe o prazer à juventude, como se o prazer tivesse uma data de validade: em certa altura da vida, seria preciso renunciar a ele, em nome de uma existência mais regrada, estável, sem percalços, e que geralmente está relacionada a um emprego fixo, casamento, filhos, etc. Como sua filosofia hedonista vê isso?


Desejar o prazer é o que define o ser humano, do ventre materno ao último suspiro. Não há idade para ser hedonista, ou para não deixar de sê-lo. Os prazeres são diversos e múltiplos. Existem prazeres relacionados à idade, é claro: a enologia não diz respeito às crianças de cinco anos, nem a gastronomia, e a velhice tem suas próprias alegrias. Mas, de qualquer maneira, é preciso responder ao prazer não pela recusa, mas por sua realização, qualquer que seja a idade.


Lendo sua obra, percebo que o senhor gosta da psicanálise, mas não da de Lacan. Por quê?


Gosto de Freud e do freudismo, de pouco da psicanálise institucional, e de praticamente nenhum psicanalista. Lacan, o maior dos histriônicos, é uma catástrofe que muito fez para a má reputação da disciplina. Vou falar sobre isso no meu próximo seminário na Universidade Popular de Caen. Em resumo: a psicanálise é um pensamento mágico que quis apresentar-se como ciência, o que forçou Freud a dizer um certo número de mentiras reconhecidas como verdade. Eu considero o pensamento mágico um pensamento nobre e respeitável, mas é preciso que ele não tenha a audácia de pretender rivalizar, por exemplo, com a teoria da relatividade. Ou com o heliocentrismo. Além do mais, conheci vários psicanalistas que me pareciam menos em condições de tratar alguém que de curar seus próprios delírios. Lacan em primeiro lugar. Para evitar dar ordens a si mesmos, eles davam a outros, com resultados deploráveis, ou nulos. É preciso voltar ao texto freudiano. Lê-lo de maneira crítica.


O senhor criou a Universidade Popular de Caen em 2002, após demitir-se do sistema de ensino francês. O que o incomoda no ensino tradicional, e que o senhor decidiu fazer diferente em sua universidade?


O que me incomodava? A instituição, a polícia acadêmica, administrativa, a burocracia, o adestramento no lugar da educação, a disciplina no lugar da instrução, a formatação intelectual e ideológica de clones destinados a servir ao mercado, o conteúdo pobre, o corpo docente triste, apagado, desmobilizado, o desprezo dos alunos, a “militarização” dos estabelecimentos, a sede de poder dos pequenos chefes, etc. A Universidade Popular de Caen é gratuita, sem obrigação de títulos, sem diplomas, sem visar o lucro, ela é livre, organizada em torno do saber existencial, pessoal…


O senhor defende a ideia de que a filosofia não é apenas uma disciplina acadêmica, mas algo que deve ser posto em prática, que deve estar presente em nosso cotidiano. Nesse sentido, a filosofia deve estar mais na mídia que na sala de aula?


Nem mais, nem menos. Há espaço para todos, e não é do meu feitio fazer fogueiras, pôr fogo em bibliotecas, ou em filósofos. Deixemos um punhado de provocadores licenciados em filosofia, professores, doutores fazer jornalismo filosófico e recuperar os benefícios simbólicos e financeiros, surfando na onda filosófica. Deixemos tal ou tal celebridade, escolhida por sua aparência, ou por sua vida social, “fazer filosofia” na televisão, invocando Hegel para falar das amantes do presidente da república. É o bolor de nossa época. Deixemos filósofos aconselharem os poderosos que nos governam, e discursarem na mídia sobre o porquê de a miséria ser mais digna em Ruanda ou na Bósnia do que na porta de casa ou na das usinas. É o resíduo da humanidade. Deixemos. Mas proponhamos também coisas que vão além disso. As pessoas que as merecem, no fim das contas, sabem ver as diferenças.

Fonte: Revista Vida Simples

.

.

0 comentários: