Você sabia?



Você sabia que em pleno século XVIII, contemporâneo de Kant, em meio às luzes esclarecidas, houve um médico-filósofo que sorria, que fazia apologia opiácea e que se dizia, como “as patas de Vaucanson em Paris” (!), “sem alma, sem espírito, sem razão, sem virtude, sem discernimento, sem gosto, sem polidez e sem costumes”? Sim, houve. Era especialista em doenças venéreas... Deixemos que ele se apresente em terceira pessoa: “Ele se gaba de ter gasto cem mil libras por dissipações e volúpias, antes de se tornar Doutor; e vangloria-se de se fazer criar Doutor por meio do dinheiro que lhe restava depois de suas dissipações”.




Provocador desde o útero, o médico-filósofo, defensor radical do ateísmo, nasce em 25 de dezembro de 1709... Foi médico das guardas francesas do duque de Grammont e no exercício de suas atribuições viveu, em decorrência de uma febre altíssima, um hápax existencial que o inscreverá filosoficamente nas obscuras adjacências da grande avenida da história da filosofia. Deixemos que Frederico II nos conte o causo: “Durante a campanha de Fribourg, o Sr. De La Mettrie foi atacado por uma febre alta: para um filósofo, uma doença é uma aula de física; ele acreditou perceber que a faculdade de pensar nada mais era do que uma conseqüência da organização da máquina, e que o distúrbio das molas influía consideravelmente nessa parte de nós que os metafísicos chamam de alma. Imbuído dessas idéias durante sua convalescença, carregou com audácia a chama da experiência pelas trevas da metafísica; tentou explicar, com a ajuda da anatomia; a textura sutil do entendimento, e só encontrou mecânica onde outros supuseram uma essência superior à matéria”. Em suma, os gritos de sua carne o conduzem à filosofia materialista, ao monismo... hedonista.



Sua filosofia irá escandalizar o século das Luzes, mas apenas Sade o reconhecerá... La Mettrie, além de seu singular aprendizado, pela carne quente, de que a realidade se reduz a um monismo materialista, irá encontrar nas estripulias opiáceas mais uma legitimação para a sua teoria. Dirá que “o ópio é o verdadeiro meio de chegar à felicidade e ao paraíso de uma máquina”. Nesse registro, vale para La Mettrie o que Elisabth de Fontenay dirá de Diderot: é um “Materialista encantado”... Nosso médico-filósofo insiste no caráter paradisíaco conhecido pelo opiômano: felicidade, doçura, tranqüilidade, beatitude, doces trevas, dirá ele.



O princípio lamettriano é simples: “O homem é uma máquina, e no universo há uma única substancia diversamente modificada”. Matéria, matéria e suas variações. É sobre essas variações, sobre as interferências materiais, sobre as implicações combinatórias dos elementos materiais que La Mettrie versará.



Ainda no registro opiáceo, La Mettrie defenderá as experiências extáticas, vertiginosas, de arrebatamentos dionisíacos: sob o ópio, ficamos livres das imposições da gravidade e do equilíbrio do espaço: “Acreditamos cair do céu na terra ou no mar, de lá elevar-se às núvens, girar como m turbilhão no ar e, em seguida, ser precipitados com todo o universo nos mais profundos abismos”. Ilusões de ótica, multiplicação de objetos, modificações irracionais de cores. Desrespeito às leis da física muito mais digno e agradável do que as elucubrações dos livros dos metafísicos...



La Mettrie foi um panfletário condenado por seus pares médicos. Foi marido e pai indigno: enrabichou-se por uma prostituta que nem se quer era bonita. Dele dirá Voltaire: “Ele proscreve a virtude e o remorso, elogia os vícios, convida seu leitor a todas as desordens, tudo sem má intenção”. Morreu em 1751 de uma indigestão de patê de águia disfarçado de patê de faisão com trufas, guarnecido de toucinho de péssima qualidade, carne de porco moída e gengibre...

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